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Vatapá

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Sou um apaixonado pelo Cerrado. Gosto das cores. Do mato ocre da estação seca, das árvores que misturam folhas verde-musgo com flores muito roxas sem vergonha de parecerem ridículas. Gosto do azul do céu e das nuvens altas. Gosto da poeira que serve para mostrar que o vento existe. Do clima agradável das tardes de maio e junho; da chuva forte que invade o calor de outubro. Mais que um bioma cravado no centro do meu país, é a paisagem do lugar onde nasci e, portanto, cenário da minha história.
Quando me ponho (ou me vejo, sem querer) em estado de contemplação, tento perceber a riqueza, a poesia, ou a piada das situações. Muitas vezes consigo. Muitas vezes falho. E lamento muito que o cerrado não tenha mais fotógrafos, mais poetas, mais pintores, mais gente que o contemple, o celebre e o proteja.
Outro dia, num canteiro ordinário da cidade, vi algo que não é raro encontrar à esta época do ano: um ipê em flor. Do lado de um espécime maior, mais florido e amarelo, havia outro, todo seco, com uma única flor branca. Era nele que estava a Beleza simples e rude que me faz admirar tanto os cenários do lugar onde nasci. Minutos depois passei por uma grande área dentro da cidade onde ainda existe mata nativa. E ela estava em brasa — uma queimada havia ocorrido ali. Lamentei, mas naquele cenário de destruição e fumaça, também percebi a beleza dura que resiste à devastação.
As árvores do cerrado possuem a façanha de expressar a um só tempo beleza, dureza e obstinação. Todas elas parecem passar parte considerável do ano resistindo à estação seca e ao sol que brilha num céu muito azul. Passam, ainda, de maneira literal por outro teste: o do fogo.
O fogo acontece, arde e passa pelo mato. O que antes era dourado ou verde musgo, se torna negro. Sobra a desolação de árvores feridas pelo entusiasmo destrutivo do fogo. Mata sem folha, de troncos e galhos negros, no limiar duvidoso entre o que é vivo e o que está morto.
Contudo, basta uma gota das primeiras chuvas para fazer brotar a vida? — ?no galho de carvão ou no chão de cinzas, um verde frágil contrasta com o negrume. Tudo isso atesta a verdade que existe nos velhos ditames alquímicos: “pelo fogo, a natureza se renova por completo”. No cerrado, vejo a expressão concreta disso. É como se o fogo fizesse parte da própria natureza cíclica da vida no cerrado e as labaredas não a incomodassem; pelo contrário, servem à prova de que é possível sobreviver à adversidade.
As árvores sobrevivem ao apetite das chamas de forma silenciosa e humilde. Modestas, esperam sem queixumes pela chuva. E basta uma gota de atenção dos deuses da chuva para que elas finalmente se expressem com um broto verde. Com duas ou três gotas elas agradecem, despertando definitivamente de sua quase-morte. E o que antes que era negro, volta a ser verde, para, mais tarde, se tornar dourado e continuar o ciclo de nascimento-destruição-renascimento.
A mim parece que a flor do ipê ou a Caliandra são as nossas Lótus. Se estas são sagradas no Oriente por simbolizarem a beleza e a vida que brotam da adversidade da lama, aquelas também deviam o ser, pois surgem das cinzas e da terra batida, seca, cor de ocre ou negra. Como já disse, o cerrado me traz beleza, dureza, obstinação, resistência, resiliência, renascimento, humildade, silêncio e força. E acredito que o cerrado empresta a seus filhos todas essas características. Os filhos-do-cerrado possuem de maneira inata a capacidade de se renovarem à revelia do Fogo e da Adversidade, ressurgindo a cada nova fase mais fortes, vivos e belos.